Continuous, entire, universal, long lasting.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

A viagem

Sinceramente? Nunca tive muitos problemas em arrumar mala (tá certo que, até um tempo atrás, quem a fazia era minha irmã, mas desde que saí de casa - há quase 1 ano - não tenho mais essa facilidade). Ainda que não fosse feita por mim, eu sempre soube o que colocar dentro dela: camisas, calças, bermudas, meias, toalhas, artigos de higiene, cuecas, calçados (embora, certa vez, minha mãe tenha esquecido esses dois últimos itens!)... Jogava tudo em cima da cama e minha nobilíssima irmã dava um jeito de caber tudo na mala.
No entanto, sempre me enganchava quando se tratava de escolher um item. As músicas eram as que me acompanhavam rotineiramente, uma ou outra camisa de futebol, bloquinho de anotações etc.; tudo isso era muito fácil. Mas o problema mesmo vinha na escolha daquele que seria como um Toddynho pra mim ("o companheiro de aventuras"): o livro.
Abro aqui um I.S. ("inter-scriptum", já que é durante a escrita do texto, e não depois - etimologia do P.S., "post-scriptum"): livro é um objeto tido como antiquado hoje em dia, que insistem em dizer que sairá de moda (e de circulação) em breve. A despeito de, no final de 2010 (em pleno século XXI, onde já se viu isso!), ter sido uma livraria a maior responsável pelo crescimento em um mês da economia cearense! Pois bem, o livro é um objeto facilmente portável, utilizado para contar histórias, reais ou fictícias, com finalidades científicas, estudantis etc. Já disseram que serve para alimentar a alma - e, mesmo que você não acredite nessas coisas, pelo menos o papel de estimulante à imaginação você deve reconhecer que ele tem. Capa dura, capa mole, com figuras, sem figuras, poucas páginas, muitas páginas... Enfim, acho que deu para você se lembrar de um livro, não é?
Fim do I.S.
Passava várias vezes em frente à estante. Olhava os títulos, pensava na duração da viagem, em quantos dias ficaria no lugar, se teria tempo livre para ler (e para escrever também, afinal, boas ideias sempre surgem em viagens). Apesar de não gostar de fazer isso, muitas vezes começava um livro novo, porque achava que o que já estava lendo não seria um bom acompanhante; às vezes seguia com o mesmo, para terminar (e erros de cálculos me deixavam abandonado do meio para o fim da estada - sem contar todo o trajeto de volta).
Livros de contos, romances, biografias, clássicos da literatura nacional, estrangeira, em língua portuguesa, em outras línguas... Minha mente entrava em parafuso com tantas opções. O processo seletivo era tão longo, que o tempo de arrumar a mala passava a ser o dobro do normal.
Agora, se me dão licença, há uma estante me esperando. E uma passagem comprada para daqui a algumas horas.

terça-feira, 26 de julho de 2011

Capítulo V

Mudou-se. E mudou. Antes extrovertido, tornou-se mais introspectivo. Passava mais tempo em casa, não se entrosava com os demais. A Mãe preocupava-se; o Pai, por sua vez, com a cabeça cada vez mais afundada nas dívidas contraídas, e que necessitavam, urgentemente, ser sanadas, nem gostava de discutir o assunto. Para ele, a questão se resumia em uma única frase:

- É a idade.

Tudo culpa da pré-adolescência.

- Imagina quando esse menino for adolescente... – costumava acrescentar depois.

Na verdade, o que os pais não sabiam era que havia um motivo específico para a mudança de comportamento do Filho: a escola nova.

Não que o ensino deixasse a desejar – ao contrário, era uma das melhores da cidade, seja em infra-estrutura, seja no corpo docente, seja na carga horária... Enfim, didaticamente, não havia do que se queixar.

No entanto, infelizmente, escolas são feitas, também, por alunos. E alguns que lá freqüentavam eram da pior espécie – talvez por seus pais terem aberto mão de sua educação por acharem que, devido ao fato de ser uma escola cara, ela é que deveria cuidar da educação de seus filhos.

Garotos mimados, recém-saídos de filmes estadunidenses pré-fabricados para adolescentes, que achavam que o dinheiro poderia comprar tudo, inclusive a humilhação sofrida por quem quer que fosse. E pelos quais Filho não sentia ódio, raiva, nem qualquer outro sentimento correlato; sentia asco.

Portanto, como interagir com elas?

Você conseguiria, caro leitor? Se sim, diga-me como: dissimulando?; sendo falso? Nada disso era do feitio do Filho.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Colcha de retalhos

Saio andando por aí, atordoado. Já passa das duas da manhã. Meu coração não pára de bater acelerado, e meus pensamentos, atropelando uns aos outros, insistem em inibir o raciocínio correto da mente. Ninguém nas ruas, a não ser carros bêbados voltando de farras noturnas – ou indo, ainda; quem sabe? Motoristas possíveis assassinos, pedestres certamente suicidas – existe, no mínimo, a tentativa. Assume-se o risco. Dolo eventual ou culpa consciente? E o que isso interessa a uma mera estatística?

Mas ainda não morri. Infelizmente. Ou não? É de se pensar como a felicidade é efêmera. Ora, a tristeza também. Yin yang. Dois lados da mesma moeda. Reciprocidade. São as cervejas surtindo efeito e me fazendo filosofar demais, como sempre? Ou são pensamentos há muito escondidos no recôndito da alma apenas se exteriorizando? Um pouco dos dois. Talvez.

Engraçado como, em um momento, você está lá, na felicidade. Depois, você está aqui, na tristeza, na revolta, na angústia. Uma porta foi o que separou a casa dela da rua. Claro, sempre há “ela” no meio da história. Ninguém gosta de viver sozinho. Ninguém pode. O que surpreende e faz refletir é ver que, às vezes, não há nem um motivo para isso. Atravessa-se a porta porque se quer, ação traz uma reação, lei de Newton, conseqüências. Nada vai mudar, é só uma porta... É? Viva nessa ilusão. Viva essa ilusão!

Quem sabe tudo não passe, realmente, de uma matrix, onde a vida de cada um já está programada. Ah, não. Ando vendo filme demais, como sempre. Alguns religiosos acreditam em destino. Eu acredito no meu: que eu posso mudá-lo. São só reflexões de uma mente desocupada e na sétima cerveja, espero depois poder lembrar as coisas ruins e esquecer as boas. Ora, das ruins eu tiro uma lição, as boas vão-me fazer viver uma nostalgia inútil e infrutífera. Mas são só reflexões! Reflexões de uma mente em/com fusão.

Chego à casa. Tonto. Minha? Dela? Nossa? Não sei. Só sei que preciso de uma cama. Pode ser a minha, a dela, a nossa. Para dormir. O mundo gira, principalmente aquele ao meu redor. Acho um quarto. Como roda! Minha cabeça pesa, não consigo dormir. Banheiro. Alívio.

Acordo na tarde seguinte. Dor de cabeça. Nunca mais bebo na vida. Telefone toca. Uma voz me chama para ir à casa dela para conversar. Reflexões sóbrias – mas nem por isso saudáveis – ao longo do caminho. O que será que a porta vai separar dessa vez?

quarta-feira, 13 de julho de 2011

A loteria

O sonho de Eduardo sempre tinha sido ganhar na loteria. E, para isso, cumpria um ritual religioso: semanalmente, fazia uma fezinha, acreditando que “dessa vez, vai”. E lá se vão longos dezoito anos.
O rito desenhava-se em várias etapas. Havia aquilo imperceptível a olho nu (como, por exemplo, sempre utilizar a mesma cueca – há dezoito anos! – ao ir fazer seu jogo), mas também aquilo que os outros já haviam notado, como sempre percorrer o mesmo caminho, pagar sua aposta no mesmo guichê – ainda que a fila estivesse maior – e dar o dinheiro, trocado, no valor exato. Religiosamente. Ainda que fosse ateu.
Embora há dezoito anos obedecesse a estas ordens mentais (pode-se dizer que era uma espécie de transtorno obsessivo-compulsivo), não tinha nenhuma razão para isso; afinal, não havia ganhado nada ainda. Na verdade, já fora contemplado algumas vezes, mas nunca com o “prêmio cheio” - e uma das regras autoimpostas consistia em só resgatar o valor se acertasse os seis números. “Ora”, costumava dizer, “vai que eu resgato? Perco, para sempre, a minha chance de ganhar o prêmio total, tenho certeza disso”.
Um belo dia, acordou com uma sensação diferente. Sabia que havia chegado o Dia D – não sabe como tirou essa conclusão, só sentiu um estalo. E gostou dele. Afinal, o prêmio estava acumulado em milhões (venhamos e convenhamos: milhões são muito dinheiro até mesmo em dólares ruandeses – se é que existe essa moeda)!
Concentrou-se. Vestiu a cueca de guerra, trajando-se por completo em seguida. Tomou o gole d'água e foi à rua. Pôs, primeiramente, o pé direito na calçada; olhou para o céu e seguiu. No meio do caminho, havia uma pedra; sem se lembrar de Drummond, chutou-a e continuou sua marcha, até chegar à lotérica. “Ótimo, só três pessoas!” A sorte realmente estava do seu lado.
Foi cumprimentado pelo Dias, entregou o bilhete preenchido e as moedas e voltou à casa, a fim de aguardar o resultado, que só saía no começo da noite. Seria uma espera angustiante; mas, para quem já esperava há dezoito anos, algumas horinhas não fariam diferença.
No horário marcado, encheu a garrafa d'água e postou-se ao lado da TV: iria acompanhar o sorteio ao vivo. Não estava nervoso – sabia que seria ele. E a certeza aumentou ainda mais ao sair o primeiro número: vinte e cinco.
Tomou o primeiro copo d'água e lembrou-se do que sempre dissera que iria fazer com o prêmio que recebesse: metade seria doada para os pais; um quarto, anonimamente para instituições de apoio aos necessitados; o que sobrasse seria para pagar contas atrasadas e depositar o restante na poupança. Não pensava nem mesmo em abandonar o emprego – não saberia como viver “sem fazer nada”, só de renda.
Quarenta e três.
Segundo copo.
“Por que anonimamente?” Um pouco de reconhecimento da sociedade não faria mal nem atrapalharia a vida de ninguém. Pronto, estava decidido: doaria, mas faria constar seu nome em todos os principais jornais da cidade. E revistas de grande porte nacionais.
Trinta e sete.
Terceiro e quarto copos.
Na verdade, metade para os seus pais era muito. Ainda mais que, somado a um quarto que seria doado às instituições, só sobraria para ele, que sempre apostou, sempre teve o trabalho de ir à lotérica, preencher o bilhete, acompanhar o sorteio etc. meros vinte e cinco por cento. Seria injusto. Ele deveria ficar com, pelo menos, metade.
Nove.
A garrafa já estava na metade. E esvaziando.
Viajaria. Com certeza, compraria um carro novo. E outra casa. Com muitos quartos. E uma casa na praia. Pensou nas festas que iria, nas pessoas novas que conheceria. Iria gastar bem o dinheiro. O restante iria para os pais e para as instituições.
Dezesseis.
Mais um copo. Transpirava de excitação.
Meu Deus! O chefe que fosse às favas! Largaria tudo; viveria como sempre sonhara, um verdadeiro novo rico, mas seria diferente de todos os outros. Teria experiência de vida, manteria a cabeça no lugar, saberia sobre o que conversar.
Pôs-se a rezar. A garrafa acabou.
Cinquenta...
e...
oito.
Na semana seguinte, já estava novamente na fila da lotérica, após o mesmo percurso, com a mesma cueca, o mesmo dinheiro trocado, o mesmo bilhete e o mesmo Dias esperando por ele. Mas aprendeu a lição: passou a ignorar todas as pedrinhas que se colocavam no seu caminho.