Estranhamente, quando acordei,
naquela manhã até então comum, percebi que não conseguia mais falar. E percebi
isso da forma mais trivial possível: após levantar-me da cama, enquanto me
dirigia ao banheiro para as devidas abluções matinais, esbarrei naquele que é o
pior inimigo das madrugadas, obstáculo que sempre se mete no meio do caminho.
Não, não era uma pedra; e sim o criado-mudo. A canela foi tão fortemente
danificada, que o sonoro grito de dor consequente pareceu que seria ouvido a
quilômetros de distância.
No entanto, estranhamente, ele
sequer saiu. O silêncio permaneceu o mesmo, ao mesmo tempo em que eu seguia
minha marcha ao banheiro, ainda atordoado, na dúvida se o som havia sido
abafado por mero capricho do acaso, fruto da minha imaginação, ou se, de fato,
ele existira, mas não saíra.
Destino final atingido, abri o
chuveiro. Às primeiras e frias gotas d’águas que me tocaram, imediatamente
iniciei o assobio mental daquela que era a minha oração matinal: Geraldo
Vandré. Todavia, ao chegar à parte cantada, já devidamente aquecida a água,
tive a confirmação de que minha voz havia mesmo fugido de mim: não consegui
sequer balbuciar o primeiro “caminhando”.
O boicote vocal, diversamente do
que pode parecer, a um primeiro momento não me abalou muito. Na verdade, caiu
como uma luva: era a desculpa ideal que eu buscava há tanto tempo. “Perfeito”,
teria pensado com os meus botões se os houvesse naquela oportunidade – mas
acabei pensando sozinho mesmo, despido de quaisquer pudores.
Continuei, então, meu dia como
se nada houvesse acontecido, ainda mais aliviado pela desnecessidade de
transformar uma insatisfação com o atual estado das coisas em atitudes
concretas. Pra ser sincero, há tempos tinha dúvida se realmente estava
indignado ou se já havia me resignado, entendendo que o mundo é assim mesmo e
nunca mudará.
Agora, a dúvida era uma questão
secundária, não importava tanto como outrora. Afinal, afônico, não havia como
botar a boca no trombone e agir em prol de um mundo mais justo. Havia de deixar
isso para os demais, enquanto eu deveria achar um jeito de me (re)encaixar
neste mesmo mundo – e, principalmente, aceitar que a luta agora deveria ser uma
bandeira dos demais e para todos.
“Sem voz, sem vez”. A
desnecessidade de agir tornou meu dia muito mais leve, o que foi notado até
mesmo pelos colegas de trabalho, que, obviamente, não se furtaram a fazer as
piadinhas de praxe, odiadas e nem por isso menos fartamente repetidas em todo
ambiente profissional.
“Como ele tá calado hoje!”,
“Será que o gato comeu sua língua?”, “Ih, será que ele descobriu?”, “Foi bem
alguma coisa ontem à noite... Ele saiu daqui tão alto astral!” eram algumas das
manifestações daqueles anônimos conhecidos. Poucos permaneceram calados como eu
– mas, diferentemente, para eles aquilo era uma opção, não uma imposição
natural. Talvez mesmo eles não se importassem... Ao antever essa possibilidade,
não me contive e deixei à mostra o meu sorriso de escárnio mais cruel e nunca
previamente ensaiado, afastando ainda mais aqueles que porventura tivessem
qualquer interesse na minha situação.
Passei a cumprir com minhas
funções diligente, embora silenciosamente; quando parei de incomodar os colegas
de trabalho ou quando encontraram outro alvo de chacota (confesso não saber o
que veio primeiro), me deixaram em paz, abrindo caminho para a aproximação
daqueles que representariam o começo do meu fim.
A verdade é que, naquele
momento, eu estava feliz e havia aceitado facilmente o bloqueio vocal de que
havia sido acometido. Não queria mudar aquela situação, desejava apenas curtir
a minha vida e deixar os problemas de lado, alheios à minha realidade e ao meu
cotidiano resignado.
Acontece que tentaram me
convencer do contrário: quiseram me fazer ver que eu não deveria aceitar aquela
situação, que eu não deveria jamais me calar e, principalmente, que eu não
poderia, em hipótese alguma, me resignar. No começo, até cheguei a ignorar as
investidas deles, mas, quanto mais eu me calava, mais eles tentavam. E me
tentavam.
Meu silêncio nunca foi o
bastante e, apesar de bem assimilado por mim, nunca foi compreendido pelos
demais. Chegamos a tal ponto que tive que redigir um documento escrito
destinado a eles, ilustrando situações, mostrando (falsas) razões e
justificando meu silêncio nas leis da natureza.
O documento foi a gota d’água
para transformar o que antes era uma mera tentativa de cooptação em ódio
mortal. Não entendiam como alguém como eu podia ter perdido a voz da noite para
o dia, passaram a me chamar de “traidor do movimento” e disseram que um dia eu
pagaria por tudo aquilo. Como se a culpa fosse exclusivamente minha!
Tentaram me atingir
violentamente de todas as formas, o que acabou sendo a última desculpa de que
eu precisava para me recolher ainda mais. Encarcerei-me em mim mesmo e passei
os últimos dias tentando achar a razão maior de tudo aquilo.
Quando, finalmente, achei tê-la
encontrado, libertei-me de verdade e soltei um sonoro “aos diabos!”, junto com
meu último suspiro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário