(Aldemir Martins, O Palhaço)
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Primeira
viagem para o exterior a gente nunca esquece. E o primeiro destino, em um
mochilão por treze países diferentes, a gente sempre lembra com um carinho
ainda mais especial. É assim, então, que Madri aparece na minha memória.
Quase seis
meses longe daquela que me atura até hoje, guardo todas as cenas daquela cidade
na minha cabeça: o reencontro em Barajas (depois de horas de ansiedade, mais
agravadas ainda pelos voos perdidos em Lisboa), o transporte de malas pelo
metrô, as caminhadas procurando o albergue. O elevador old school, o quarto digno de um três estrelas no Brasil, a
recepção por uma marcha gay que passou em frente ao albergue assim que a porta
foi aberta. Os pontos turísticos. Os kebabs. Os McDonalds, Burger King e cafés
a cada quarteirão.
Mas o que
mais me marcou foi um acontecimento trivial. Bobo, até.
Viajando, o
senso de liberdade havia se aguçado. Em mim, isso se expressava em uma vontade
líquida: um copo de cerveja no meio da rua, no meio do nada.
Um copo, não;
poderia ser uma caneca de chope ou uma long
neck. A única condição era que fosse apreciada enquanto eu caminhava pelas
ruas, como se nada mais fosse me deter. E, a cada passo dado, a vontade crescia
mais e mais. Até o ponto de virar desejo.
Ela, do alto
da sua experiência quase semestral naquele habitat, decidiu me alertar:
- Olha,
cuidado. Tem canto aqui que é proibido beber no meio da rua.
Cego pelo meu
desejo, fui a uma mercearia, chamei o vendedor e, no meu portunhol aprendido em
três anos na casa de cultura hispânica, indiamente perguntei:
- Hola. Cerveza?
Enquanto ele
me passava a garrafa e o preço, me lembrei de dar ouvidos ao alerta feito por
ela. Afinal, não queria, no primeiro dia, ter complicações legais no
estrangeiro.
- Señor...
Puedo beber encuanto camino?
A cara de surpresa
do vendedor, como se aquela pergunta fosse a mais absurda do mundo, me deu um
indício da resposta que viria.
- Claro que sí!
Alívio. Abri
a garrafa e, antes mesmo de terminar o tsss, ele deu o arremate que me marcou
até hoje:
- Sí,
se puede tomar. Pero, si la polícia lo vé, pagará una multa.
...
Com esse
raciocínio, aprendi: sim, posso fazer qualquer coisa. Se for errada, só não
posso ser descoberto.
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