Continuous, entire, universal, long lasting.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

EducAção

(Queimada na floresta, Inimá de Paula)
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Vindo ao trabalho hoje, num intervalo de menos de dez segundos, vi um ser furar o sinal vermelho e jogar papel no chão. Assim, desse jeito mesmo, como se fosse a coisa mais normal do mundo. Foi assim, oh:
6:50 da manhã, eu tava indo de casa pro trabalho, quando o sinal, aberto para mim, fica amarelo. Enquanto eu freio calmamente, com o sinal ainda amarelo (tudo isso dura frações de segundos), vejo que na transversal tem um carro em cima da faixa de pedestres, acelerando como se estivesse na linha de partida de alguma corrida muito importante. Ao ver que eu parei, o carro arranca, dobrando a esquina, e estaciona logo adiante. Quando sai, o piloto motorista joga um papel no chão e passa a caminhar calmamente pela calçada.
Pronto, foi isso.
Não sei porque esse acontecimento me fez pensar... Afinal, não é tão normal as pessoas furarem sinais e jogarem papel no chão? É. Infelizmente.
Por que as pessoas são assim? Quem são elas? O que elas comem? Descubra mais tarde, no Globo Repórter. Não vou cair aqui no reducionismo (e na besteira) de dizer que "é coisa de pobre", "é coisa de brasileiro", "a culpa é do governo", "abaixo o capitalismo" e outras generalizações abstratas. A questão é o egoísmo de todos nós, decorrente da falta de educação num mundo cada vez mais individualista.
"Ah, mas não vou atrapalhar ninguém passando esse sinal", "que mal tem jogar esse papelzinho no chão?" presumo que sejam alguns dos pensamentos dessas pessoas. Sim, você vai atrapalhar! Sim, faz mal jogar papel no chão!
Ia continuar minha análise pseudoantroposociofilosófica, mas tive que interrompê-la ao ouvir uma sinfonia de buzinas atrás de mim:
- Pô, pessoal, são só cinco segundos pro meu filho descer!
Ê raça...

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Papo de boteco

(O diabo da garrafa, Hélio Rola)

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"É que Narciso acha feio o que não é espelho"(Caetano Veloso)

Sábado à noite. Lá estava eu, pronto para o que viesse. E, melhor ainda, preparado para quem viesse.
Não era porque eu me julgasse melhor do que ninguém, mas, bolas!, naquela noite nada iria sair do meu controle. Nunca fui metrossexual (sei nem o que isso significa, juro!) nem supersticioso, mas trajava a roupa que, até então, estava invicta. Nem demorei muito para escolhê-la; ela, na verdade, mostrou-se para mim assim que abri o armário, e, como se já estivesse comigo na mesa do bar, me desafiou com a pergunta:
- Não é hoje que você vai dar sopa pro azar, né?
Não, definitivamente não seria. Vesti-a (caiu como uma luva!) e prontamente fui para o segundo e último tempo daquele momento pré-noitada: pratiquei o que considero o "paradoxo capilar". Este consiste, resumidamente, em você demorar tempo suficiente arrumando o cabelo para dar a impressão de que você não arrumou nada. Entendeu? Prometo que isso não é complexo, se quiser ensino depois.
Depois, as derradeiras: carteira, chave do carro, telefone, odores e auto-estima juntaram-se a mim e me acompanharam até o bar de sempre, com o garçom de sempre, a bebida de sempre e a mesa variável. Mas, naquela noite especial, a sorte mais uma vez me sorriu: embora o bar estivesse apinhado de gente - como sempre -, a mesa que surgiu e se ofereceu para mim foi a mais central de todas, com nada mais, nada menos do que duas cadeiras vazias, que logo me deram a entender que seriam a minha e a dela.
Sentei-me e, enquanto as caixas de som criavam o clima perfeito, entoando Bon Jovi e seu hino Always, aguardei a chegada do grande companheiro Tobias. Este, quando rapidamente apareceu, já trouxe de bandeja uma véu de noiva e dois copos, prevendo aquilo que certamente aconteceria ao longo da noite. "Ah, grande Tobias, você me conhece bem!", e a resposta dele, também mentalmente, foi um simples sorriso.
O tira-gosto não tardou também a vir: um coração de frango para hipertenso nenhum botar defeito. Pronto, agora só faltava aquela que sentaria na cadeira ainda desocupada. Mas, do jeito que a sorte estava do meu lado, nem precisaria de muito esforço, bastaria sorrir e esperar.
Foi quando a avistei. Na hora, percebi logo que não era nenhuma Bárbara Evans, mas também não chegava a ser uma Rossicléa. A poucas mesas de distância, junto com outras amigas, vi no seu perfil a companheira ideal para o resto da noite. Estava claro que ela se entregaria fácil ao meu charme, charme que estava ali, a seu inteiro dispor, para dar à sua noite o que ela estava precisando para ser feliz. Agora, então, seria apenas sorrir. E esperar.
Longe de um tradicionalismo monogâmico e querendo iniciar um ridículo, mas necessário, joguinho amoroso, passei a flertar com todas as mulheres da redondeza, mas com os olhos vidrados naquela que havia escolhido como a vítima da noite. Não importava que as demais correspondessem à falsa paquera: na verdade, meu olhar soslaiamente desviava para a minha musa mediana.
Os goles de cerveja aumentavam, o copo esvaziava mais rápido e o tira-gosto já estava perto do fim. O Tobias começava a se impacientar, enquanto eu ia ficando inquieto com a falta de atitude da eleita. Esperava há algum tempo, sem entender o que ela queria além de mim: ainda que existisse algo a mais - o que, diga-se de passagem, é bastante improvável, para não dizer impossível -, ela não estaria à altura. Ora, ela só me tinha por mera liberalidade (por que não dizer bondade?) minha.
Meia agoniante hora se havia passado, e nada de ela corresponder aos meus olhares - que iam ficando cada vez mais diretos, à medida que as garrafas se somavam à minha frente. O coração já tinha ido todo embora, e agora eu comia, mesmo sem fome, apenas as folhas de alface que haviam restado na bandeja, fechado no meu mundo de inquietação e dúvida. Mas o pior mesmo era o risinho de escárnio do Tobias.
De repente, no entanto, uma centelha de esperança: o que antes eram olhares unilaterais passou a ser recíproco. A correspondência trouxe de volta a minha auto-estima, e os sorrisos se multiplicaram ainda mais quando, no intervalo entre um olhar e outro, eu a via trocando confidências com as amigas, apontando em minha direção. Naquele momento, eu tive a certeza de que aquela seria mesmo a minha noite.
O encontro de olhares continuou por longos minutos, que pareceram uma eternidade, e quando o Tobias, desistindo de esperar, veio em minha direção para retirar a cadeira e o copo sobressalentes (que nessa hora, ironicamente, registravam a presença de uma ilustre mosquinha, espectadora do improvável), ela pareceu adivinhar a atitude daquele garçom atrevido e a ele se antecipou:
- Com licença...
Ah, a sensação de dever cumprido. Meu sorriso involuntário certamente entregou tudo que meu silêncio ocultara.
- Não sei nem como te dizer isso...
Não precisa dizer nada, minha querida. Sente-se e, sem mais delongas, vamos ao que interessa. Você já perdeu tempo demais!
- Mas é o seguinte...
O óbvio não precisa ser dito. Vamos, vamos, vamos!
- O senhor está com um negócio verde no meio do seu dente!
Maldita! Queria era a minha mesa, aposto.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Microconto

(Água forte sobre papel, Raimundo Cela)
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Acostumado a repetir, de boa fé, jurisprudências e doutrinas nas decisões que redigia para seu chefe assinar, o assessor daquele juiz foi exonerado do cargo após sucumbir à tentação maior: passara a romancear os fatos de seus réus.