Continuous, entire, universal, long lasting.

quinta-feira, 14 de março de 2013

Encontros & desencontros


Foi bem ali, na esquina de algum tempo atrás
Do alto dos meus quinze anos
Que pela primeira vez te avistei
E a tua lembrança que me vem à mente
Não sei se me mente:
Será que sonhei?

Aquela imagem que não se esfaz
Vestida de verde, provocando danos
Invadiu meu corpo, minha alma e meu ser
Passeou no meu passado e meu presente moldou.
Uma brisa violenta que me derrubou
E alimentou um coração que sequer sabia ter.

Em que espaço-tempo escondes teus sinais?
Foste da minha razão meros enganos
Ou do meu coração simples criação
Para ocupar o lugar que o nada preenchia
No tempo em que o nada ainda havia
E se confundia com a emoção?

Sei que desde aquele dia não te acho mais
Penso que foste obra dos anjos
Que te fizeram com tais arranjos
Bem ali, num tempo jamais.

terça-feira, 12 de março de 2013

Só Chico

Seu nome era Chico, nada além disso. Só Chico. Tinha gente que, pra frescar com a cara dele, chamava de "Só Chico". Não sei se para evitar brigas bestas ou por não entender mesmo, ele atendia e muitas vezes ainda corrigia:
- Só Chico, não. Chico. O só é só quando perguntam meu sobrenome, eu num tenho não.
Solitário, Chico cresceu na rua. Ou melhor, no que havia dela naquele tempo. Era só areia e, de vez em quando, um matinho seco. Vivia do que lhe davam os menos lascados (o que não era lá grande vantagem) e aprendia o que se lhe oferecia de mão beijada. Não sabia o que era brincar, pois a vida não lhe permitia momentos de diversão.
Mas, ainda que não pensasse em se divertir, as necessidades do corpo de Chico acabaram por aparecer um dia. E, solitário como era, ele acabou se engraçando com a primeira que lhe deu atenção: a jumenta Providença, que ficava no sítio do Seu Tonico. Chico, na verdade, não entendia nem o que tava acontecendo. Só sabia que tinha que ficar cada vez mais perto da Providença, e sempre se aproximando mais.
Daí até consumar o fato foi um pulo.
Fonte de alívio diário, o relacionamento começou a se tornar sólido. Chico não gostava nem de ver quando os vaqueiros do Seu Tonico montavam na sua Providença, mas tinha que entender: afinal, era trabalho.
E Chico, que antes era conhecido como "Só Chico", passou a ser, por mais de cinco anos, o "Chico da Providença".
O problema veio quando o Tonico descobriu - tal qual o corno, foi o último a saber. Armou-se um escarcéu na cidade, e o delegado teve que tomar uma atitude. A saída, para tranquilizar Tonico, foi prender o Chico e enquadrá-lo na lei dos crimes ambientais, por maus tratos contra animal. Na verdade, o delegado devia favores a Tonico e, se pudesse, teria enquadrado Chico em estupro contra vulnerável.
Dizem que hoje em dia se vê por aí, nos cantos, cabeça baixa, sempre aguardando um carinho e o tratamento que nunca teve na vida. Quem? Ora, a jumenta Providença.

segunda-feira, 11 de março de 2013

Felicidade conjugal


Seu Zeca e Dona Maria formavam um belo casal - talvez o mais longo que eu já tenha conhecido na minha vida. Aliás, tudo relacionado à vida de ambos foi bastante duradoura. Conta-se inclusive que, certa vez, Dona Maria, triste com o passamento daquele que fora seu companheiro por mais de oitenta anos, disse que Seu Zeca partira por problema renal. E completou: "essa nossa família tem esse rim assim, fraco". 
Adotei ambos como meus terceiros avôs (ou, antes: eles me adotaram como mais um neto) e, quando criança, meu maior orgulho era espalhar que eles eram vizinhos de uma das maiores personagens vivas do Ceará: o Seu Lunga - ah, a simplicidade infantil. Confesso: inventava para os meus coleguinhas, para melhor passar, que, sempre que os visitava, me encontrava com o Seu Lunga, seja na calçada, seja mesmo na loja do Seu Zeca. E, naquela tenra idade, isso era suficiente para me render atenção e fama.
O tempo passou e o meu orgulho deles, hoje em dia, mudou a sua origem: decorre dos seus ensinamentos (e não foram poucos). A maioria deles ligada à felicidade conjugal.
Uma dessas lições me foi repassada em pessoa pelo próprio Seu Zeca. O dia, como costumava ser, era domingo. A família estava toda reunida, a mesa posta e o São Geraldo (de vidro, claro!) despejava nos copos. Enquanto as conversas e as risadas corriam solta ao redor da mesa, as esposas serviam os pratos de seus respectivos. Ao presenciar aquela cena, Seu Zeca disparou:
- Nunca!
As vozes silenciaram, apenas uma risadinha tímida quis cortar a bola de feno que atravessou a sala de jantar após o brado de Seu Zeca, logo interrompida pela sua fala firme:
- Nesses anos todos, nunca deixei a Maria fazer meu prato.
Um gentleman? Um cavalheiro de primeira classe que se revelava assim, tão de repente?
Um de seus filhos, surpreso, comentou:
- Que bonito, pai!
- Bonito, nada! - veio a resposta. Vai que eu me acostumo, um dia ela briga comigo e eu fico sem comer?
O maior dos ensinamentos, no entanto, eu lamento não haver presenciado. Assim, não sei se o repasso da forma como ocorrido o fato, mas o importante é que foi assim que o absorvi, passando a, desde então, carregá-lo comigo diariamente.
Alguém, um dia, tendo Seu Zeca e Dona Maria como baluartes de um matrimônio feliz e duradouro, quis saber o segredo de um bom casamento. Conversou isoladamente com a Dona Maria e, em resposta, obteve a declaração:
- Meu filho, vou lhe contar um segredo: sabe, eu adoro a pontinha do pão, mas sempre dou pro Zeca comer...
Ele fez cara de que tinha entendido, mas, na verdade, não entendera nada. O tempo passou e a tal pessoa, ainda com a pulga atrás da orelha, resolveu perguntar ao outro polo da relação.
Seu Zeca titubeou um pouco, pigarreou um pouco mais e finalmente decidiu falar:
- Meu filho, nunca falei isso pra ninguém, mas eu odeio a ponta do pão!