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quarta-feira, 13 de julho de 2011

A loteria

O sonho de Eduardo sempre tinha sido ganhar na loteria. E, para isso, cumpria um ritual religioso: semanalmente, fazia uma fezinha, acreditando que “dessa vez, vai”. E lá se vão longos dezoito anos.
O rito desenhava-se em várias etapas. Havia aquilo imperceptível a olho nu (como, por exemplo, sempre utilizar a mesma cueca – há dezoito anos! – ao ir fazer seu jogo), mas também aquilo que os outros já haviam notado, como sempre percorrer o mesmo caminho, pagar sua aposta no mesmo guichê – ainda que a fila estivesse maior – e dar o dinheiro, trocado, no valor exato. Religiosamente. Ainda que fosse ateu.
Embora há dezoito anos obedecesse a estas ordens mentais (pode-se dizer que era uma espécie de transtorno obsessivo-compulsivo), não tinha nenhuma razão para isso; afinal, não havia ganhado nada ainda. Na verdade, já fora contemplado algumas vezes, mas nunca com o “prêmio cheio” - e uma das regras autoimpostas consistia em só resgatar o valor se acertasse os seis números. “Ora”, costumava dizer, “vai que eu resgato? Perco, para sempre, a minha chance de ganhar o prêmio total, tenho certeza disso”.
Um belo dia, acordou com uma sensação diferente. Sabia que havia chegado o Dia D – não sabe como tirou essa conclusão, só sentiu um estalo. E gostou dele. Afinal, o prêmio estava acumulado em milhões (venhamos e convenhamos: milhões são muito dinheiro até mesmo em dólares ruandeses – se é que existe essa moeda)!
Concentrou-se. Vestiu a cueca de guerra, trajando-se por completo em seguida. Tomou o gole d'água e foi à rua. Pôs, primeiramente, o pé direito na calçada; olhou para o céu e seguiu. No meio do caminho, havia uma pedra; sem se lembrar de Drummond, chutou-a e continuou sua marcha, até chegar à lotérica. “Ótimo, só três pessoas!” A sorte realmente estava do seu lado.
Foi cumprimentado pelo Dias, entregou o bilhete preenchido e as moedas e voltou à casa, a fim de aguardar o resultado, que só saía no começo da noite. Seria uma espera angustiante; mas, para quem já esperava há dezoito anos, algumas horinhas não fariam diferença.
No horário marcado, encheu a garrafa d'água e postou-se ao lado da TV: iria acompanhar o sorteio ao vivo. Não estava nervoso – sabia que seria ele. E a certeza aumentou ainda mais ao sair o primeiro número: vinte e cinco.
Tomou o primeiro copo d'água e lembrou-se do que sempre dissera que iria fazer com o prêmio que recebesse: metade seria doada para os pais; um quarto, anonimamente para instituições de apoio aos necessitados; o que sobrasse seria para pagar contas atrasadas e depositar o restante na poupança. Não pensava nem mesmo em abandonar o emprego – não saberia como viver “sem fazer nada”, só de renda.
Quarenta e três.
Segundo copo.
“Por que anonimamente?” Um pouco de reconhecimento da sociedade não faria mal nem atrapalharia a vida de ninguém. Pronto, estava decidido: doaria, mas faria constar seu nome em todos os principais jornais da cidade. E revistas de grande porte nacionais.
Trinta e sete.
Terceiro e quarto copos.
Na verdade, metade para os seus pais era muito. Ainda mais que, somado a um quarto que seria doado às instituições, só sobraria para ele, que sempre apostou, sempre teve o trabalho de ir à lotérica, preencher o bilhete, acompanhar o sorteio etc. meros vinte e cinco por cento. Seria injusto. Ele deveria ficar com, pelo menos, metade.
Nove.
A garrafa já estava na metade. E esvaziando.
Viajaria. Com certeza, compraria um carro novo. E outra casa. Com muitos quartos. E uma casa na praia. Pensou nas festas que iria, nas pessoas novas que conheceria. Iria gastar bem o dinheiro. O restante iria para os pais e para as instituições.
Dezesseis.
Mais um copo. Transpirava de excitação.
Meu Deus! O chefe que fosse às favas! Largaria tudo; viveria como sempre sonhara, um verdadeiro novo rico, mas seria diferente de todos os outros. Teria experiência de vida, manteria a cabeça no lugar, saberia sobre o que conversar.
Pôs-se a rezar. A garrafa acabou.
Cinquenta...
e...
oito.
Na semana seguinte, já estava novamente na fila da lotérica, após o mesmo percurso, com a mesma cueca, o mesmo dinheiro trocado, o mesmo bilhete e o mesmo Dias esperando por ele. Mas aprendeu a lição: passou a ignorar todas as pedrinhas que se colocavam no seu caminho.

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