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quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Retorno adiante

Se eu disser que ele acordou, estarei errado – mais adequado dizer que ele se levantou; afinal, não pregara os olhos a noite inteira. A madrugada correra ruidosa, com aquele barulho silencioso característico (inclusive os cri-cris, os bibis e os bêbados portando suas armas de quatro rodas); e nervosa, fruto talvez dos três cafés sorvidos em um intervalo de seis horas (Parabéns! Sua úlcera acaba de ganhar mais alguns centímetros).

No entanto, não fora o café nem o trânsito que o afligira; na verdade, isso tudo era uma besteira, devendo ser motivo de descontração, e não da preocupação de que se havia travestido nas últimas horas. Nem sempre fora assim, vale ressaltar.

Inicialmente, surgira como um convite espontâneo, em um dos corriqueiros jantares semanais. Sabe o que é?, Diga, É que tá rolando isso toda semana, e ultimamente não tem tido gente suficiente; talvez se você quiser participar... Pode contar comigo, mas como fazemos? Você passa aqui ou eu passo lá? Pode deixar, eu passo aqui.

Ficara realmente feliz de achar mais um para completar o time. Ultimamente, seus amigos vinham tendo muitos problemas no trabalho, de modo que o racha semanal frequentemente corria desfalcado, e as duas horas acabavam reduzidas a meros quarenta e cinco minutos, pois ninguém aguentava correr feito um condenado por duas horas seguidas – ainda mais quem era do time do Maradona (o único que não faria falta ao jogo, mas que fazia questão de comparecer religiosamente toda semana).

Principalmente quando ele tinha plena certeza de que o novo convidado não faria confusão nenhuma. Afinal, seu pai sempre fora conhecido como alguém pacato. E ele e seus amigos estavam cansados dos confuseiros anteriores.

Voltemos àquela manhã, na qual os pensamentos se atropelavam, sucedendo-se uns aos outros.

Mais uma vez, lembrara-se de, quando criança, seu pai levando aqueles gols que só pais levam dos filhos – aquele chute fraco, no meio do gol, o pai pulando para o lado, deixando a bola (canarinho vermelha) passar vagarosamente; e a plenitude de felicidade que isso trazia, mesmo que por poucos segundos. Mamãe, mamãe, fiz um gol no papai!, Que bom, meu filho! Mamãe, vou ser jogador de futebol!, Claro, meu filho! (com aquele risinho de canto de boca).

Agora, a situação se invertera: o goleiro era ele; seu pai nunca mais havia jogado futebol na vida. Tinha certeza absoluta de que seu joelho não aguentaria; se aguentasse, a barriga não o deixaria correr; se deixasse, lhe faltaria ritmo de jogo... A única chance que ele teria de fazer um gol seria naquelas oportunidades cara a cara.

Aí vem o que lhe estava incomodando: e se essa oportunidade surgisse? Pior: e se fosse pai contra filho? Diferentemente daqueles tempos, não poderia inverter os papéis de outrora, pulando ridiculamente para o lado para deixar a bola passar; o pai perceberia. Da mesma forma, não seria capaz de matar uma futura felicidade do velho, seu ídolo, que pensava estar ainda em plena forma física, com capacidade de fazer gol no seu filho.

Ainda há de se considerar a possibilidade de o pai fazer um gol legítimo, sem facilitação por parte do filho; mas persistiria a dúvida: quem dos seus amigos acreditaria nisso? Não, você deixou a bola passar, assim não vale!, Pois vem pro gol você!, Não, já que estou pagando, vou jogar na linha... O bate-boca começaria, e o confuseiro da noite seria ele.

A terça-feira correu tensa. Tais pensamentos não o abandonaram em momento algum, opondo silenciosa e angustiosamente pai e filho.

Cinco horas.

Cinco e meia.

Seis horas.

Alô, João? Sabe o que é? Fiquei preso aqui no trabalho...

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