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quarta-feira, 12 de março de 2014

É só história...

(Totonha Laprovitera, Nem todo cinza é preto e branco)
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 Lembro-me como se fosse ontem: tirar a carteira de motorista (a "carta", para os mais velhos) não foi tão difícil assim. Fiz o psicodélico, compareci ao curso obrigatório de uma semana (onde aprimorei minha técnica de como dormir sentado em uma cadeira extremamente desconfortável, mas fingindo estar acordado), prestei o exame que serviu apenas para ver se eu sabia ler ou não, passei pelas aulas de direção e pronto. No Detran, fiz exatamente o que me ensinaram: parei na faixa de pedestre (mesmo sem ninguém querendo atravessar), parei antes do "trilho" (onde até fiz menção de ouvir os dois lados, para saber se vinha trem ou não - não ganhei nem um sorrisinho meia-boca do examinador por isso!) e estacionei de ré. Aprovado, agora era só esperar.
O teste veio depois. Não foi nas ruas de Fortaleza, que dez anos atrás não eram tão caóticas como hoje; nem em rodovias, nas quais só me aventurei com bastante experiência. O teste mesmo, o rito de passagem, foi quando me atrevi a passar pela temida Praça Portugal.
Até esse dia, eu sempre pensava em como fugir dela por vias alternativas. Arrodeava, andava quatro, cinco quarteirões a mais, mas no final dava certo. Gastando, no entanto, combustível e preciosos minutos para além do necessário.
Um dia, então, decidi me emancipar, atingir a minha maioridade.
Não lembro onde queria ir, mas, antes de sair de casa, desenhando mentalmente todo o trajeto que percorreria, incluí na rota aquela que havia sido abandonada desde o dia em que substituíra, como meio de locomoção, a carteira de estudante pela de habilitação. Segui o meu caminho guiado pelas gotas de suor que escorriam pelo meu corpo - quanto mais me aproximava da "esquina da praça", mais sentia que não estava dirigindo, e sim nadando em um mar de suor e nervosismo.
Pronto, cheguei. Desembargador Moreira com Dom Luís.
O Shopping Aldeota do meu lado direito, milhões de pedestres recém-saídos de seus formigueiros querendo atravessar de um lado para o outro, a tão conhecida parada de ônibus do meu lado esquerdo e, no horizonte, à beira do mar (esse, de verdade), meu oásis urbano. Mas, para alcançá-lo, eu deveria passar por essa provação, meu bar mitzvah aos dezoito anos.
O pé tremendo sobre o acelerador, o medo infantil de estancar (a época em que isso era rotineiro já me parecia tão longe!), a fila de carros atrás de mim e, na rotatória, um, dez, cinco, mil, milhões de carros circulando, iguaizinhos uns aos outros. Seriam, na verdade, cópias de um só carro, replicado, girando e me impedindo de entrar? Motoristas dirigiam como naquele vídeo do Pateta, enquanto a fila atrás de mim só aumentava; a do lado, porém, obedecia estritamente ao postulado de Murphy, segundo o qual "a fila do lado sempre anda mais rápido".
Não sei quanto tempo fiquei lá, parado, aguardando o momento certo para me inserir naquela volta insana e acabar com o carrossel de emoções. Cinco segundos? Trinta segundos? Um minuto? Vinte minutos? Uma hora? Uma década? Quem sabe?
Que ronquem os motores...
Vai!
Êxtase, risos, suor e lágrimas - se fosse o roteiro de um filme, nessa hora o bom diretor captaria exatamente essas sensações mim, enquanto eu daria voltas e mais voltas ao redor da praça, até o por do sol. A verdade, no entanto, foi que eu entrei, saí e segui meu caminho aliviado. Havia, de fato, completado o ciclo.
Olho com carinho para esse dia, o dia em que percebi que, sim, eu podia dirigir. Mas isso vai ficar apenas para a história. Pois, sob o pretexto de que vai melhorar o trânsito da nossa capital, pretendem destrui-la.

E agora, sem passar por esse rito de passagem tão importante, como nossos educados e diligentes motoristas adquirirão a habilidade necessária para circular pelas ruas da cidade?

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