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quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Capítulo III

Nascido em meio à crise dos oitenta, teve uma infância feliz. Afinal, não tinha como sentir falta de um luxo que sequer chegara a conhecer - e do qual apenas ínfima parcela da sociedade usufruía, seja no passado, seja no presente. Ausente o luxo, mas presentes a satisfação e a realização nas coisas da vida (que, para a gente crescida, são muitas vezes qualificadas como pequenas - distinção desconhecida e ignorada do alto da sapiência infantil).

Bonecos (Comandos em Ação, Jaspion, Jiban, Jiraya, Tartarugas Ninja, soldadinhos de guerra), ioiôs, carrinhos. Pega-pega, esconde-esconde, joão-atrepa, cola-cola, polícia e ladrão, homem pega mulher (e mulher pega homem), garrafão (a mais violenta de todas!). Velocípede, bicicleta com rodinhas, bicicleta sem rodinhas. O primeiro videogame. Bolas: travinha, cascudinho, gol a gol, cruzamento, "sai que é sua, Taffarel!", "Zeeeeeetti!". Karatê.

Em essência, tudo igual às demais crianças. Inclusive no colégio.

Mesmo com o orçamento familiar apertado, sempre estudara em escolas particulares. Não as ditas melhores, cujas mensalidades deixavam transparecer uma preocupação meramente mercadológica, imbuídas do espírito de manutenção do status quo (às favas os princípios e valores!); essas, não. Talvez por não poderem arcar com os custos, seus pais preferiram matricular as crianças em colégios menores, onde se conhece reciprocamente da diretora até o faxineiro, passando pela coordenadora - o que lhes permitia acompanhar com atenção a educação dos filhos.

Isso fez com que, desde cedo, aprendesse a valorizar os estudos (ou, pelo menos, assentasse no subconsciente uma das três frases típicas de mãe: "já fez a tarefa?" - com todas as implicações dela decorrentes). Desenvolvera o hábito da leitura, sonhando um dia ser como Maurício de Sousa, Pedro Bandeira e Marcos Rey; ou como a tia Solange, bibliotecária, "com aquele tanto de livro pra ler". Desenvolvera, também, o gosto pela Matemática, realizando-se quando resolvia expressões numéricas envolvendo parênteses, chaves e colchetes.

Não era um nerd; estudava, dava-se bem nas provas, mas, da mesma forma, dava-se bem com todos os colegas da escola. Não sofria bullying (aliás, ninguém na época sofria - o máximo que acontecia eram brincadeiras, provocações típicas da idade e que não tinham toda a repercussão adquirida posteriormente), era amigo de todos: desde o filho do vizinho, que viajava uma vez por ano para os Estados Unidos, ao Zé, filho do porteiro, que jogava bola mais do que qualquer outro (tanto em frequência, posto não ir à escola, quanto em qualidade).

Para ele, todos eram iguais. A mudança começou no dia do choque.

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