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sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

O ensurdecedor som do silêncio


Estranhamente, quando acordei, naquela manhã até então comum, percebi que não conseguia mais falar. E percebi isso da forma mais trivial possível: após levantar-me da cama, enquanto me dirigia ao banheiro para as devidas abluções matinais, esbarrei naquele que é o pior inimigo das madrugadas, obstáculo que sempre se mete no meio do caminho. Não, não era uma pedra; e sim o criado-mudo. A canela foi tão fortemente danificada, que o sonoro grito de dor consequente pareceu que seria ouvido a quilômetros de distância.
No entanto, estranhamente, ele sequer saiu. O silêncio permaneceu o mesmo, ao mesmo tempo em que eu seguia minha marcha ao banheiro, ainda atordoado, na dúvida se o som havia sido abafado por mero capricho do acaso, fruto da minha imaginação, ou se, de fato, ele existira, mas não saíra.
Destino final atingido, abri o chuveiro. Às primeiras e frias gotas d’águas que me tocaram, imediatamente iniciei o assobio mental daquela que era a minha oração matinal: Geraldo Vandré. Todavia, ao chegar à parte cantada, já devidamente aquecida a água, tive a confirmação de que minha voz havia mesmo fugido de mim: não consegui sequer balbuciar o primeiro “caminhando”.
O boicote vocal, diversamente do que pode parecer, a um primeiro momento não me abalou muito. Na verdade, caiu como uma luva: era a desculpa ideal que eu buscava há tanto tempo. “Perfeito”, teria pensado com os meus botões se os houvesse naquela oportunidade – mas acabei pensando sozinho mesmo, despido de quaisquer pudores.
Continuei, então, meu dia como se nada houvesse acontecido, ainda mais aliviado pela desnecessidade de transformar uma insatisfação com o atual estado das coisas em atitudes concretas. Pra ser sincero, há tempos tinha dúvida se realmente estava indignado ou se já havia me resignado, entendendo que o mundo é assim mesmo e nunca mudará.
Agora, a dúvida era uma questão secundária, não importava tanto como outrora. Afinal, afônico, não havia como botar a boca no trombone e agir em prol de um mundo mais justo. Havia de deixar isso para os demais, enquanto eu deveria achar um jeito de me (re)encaixar neste mesmo mundo – e, principalmente, aceitar que a luta agora deveria ser uma bandeira dos demais e para todos.
“Sem voz, sem vez”. A desnecessidade de agir tornou meu dia muito mais leve, o que foi notado até mesmo pelos colegas de trabalho, que, obviamente, não se furtaram a fazer as piadinhas de praxe, odiadas e nem por isso menos fartamente repetidas em todo ambiente profissional.
“Como ele tá calado hoje!”, “Será que o gato comeu sua língua?”, “Ih, será que ele descobriu?”, “Foi bem alguma coisa ontem à noite... Ele saiu daqui tão alto astral!” eram algumas das manifestações daqueles anônimos conhecidos. Poucos permaneceram calados como eu – mas, diferentemente, para eles aquilo era uma opção, não uma imposição natural. Talvez mesmo eles não se importassem... Ao antever essa possibilidade, não me contive e deixei à mostra o meu sorriso de escárnio mais cruel e nunca previamente ensaiado, afastando ainda mais aqueles que porventura tivessem qualquer interesse na minha situação.
Passei a cumprir com minhas funções diligente, embora silenciosamente; quando parei de incomodar os colegas de trabalho ou quando encontraram outro alvo de chacota (confesso não saber o que veio primeiro), me deixaram em paz, abrindo caminho para a aproximação daqueles que representariam o começo do meu fim.
A verdade é que, naquele momento, eu estava feliz e havia aceitado facilmente o bloqueio vocal de que havia sido acometido. Não queria mudar aquela situação, desejava apenas curtir a minha vida e deixar os problemas de lado, alheios à minha realidade e ao meu cotidiano resignado.
Acontece que tentaram me convencer do contrário: quiseram me fazer ver que eu não deveria aceitar aquela situação, que eu não deveria jamais me calar e, principalmente, que eu não poderia, em hipótese alguma, me resignar. No começo, até cheguei a ignorar as investidas deles, mas, quanto mais eu me calava, mais eles tentavam. E me tentavam.
Meu silêncio nunca foi o bastante e, apesar de bem assimilado por mim, nunca foi compreendido pelos demais. Chegamos a tal ponto que tive que redigir um documento escrito destinado a eles, ilustrando situações, mostrando (falsas) razões e justificando meu silêncio nas leis da natureza.
O documento foi a gota d’água para transformar o que antes era uma mera tentativa de cooptação em ódio mortal. Não entendiam como alguém como eu podia ter perdido a voz da noite para o dia, passaram a me chamar de “traidor do movimento” e disseram que um dia eu pagaria por tudo aquilo. Como se a culpa fosse exclusivamente minha!
Tentaram me atingir violentamente de todas as formas, o que acabou sendo a última desculpa de que eu precisava para me recolher ainda mais. Encarcerei-me em mim mesmo e passei os últimos dias tentando achar a razão maior de tudo aquilo.
Quando, finalmente, achei tê-la encontrado, libertei-me de verdade e soltei um sonoro “aos diabos!”, junto com meu último suspiro.

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