Continuous, entire, universal, long lasting.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Rascunhos

(Sérvulo Esmeraldo, Couple)
----

RASCUNHOS (Rafael Caneca)

É para mim que guardo meus pensamentos
Mais recônditos, impuros e obscenos
De amor, casto e angelical,
Como você, desejo mais que natural.

Sonho com a tua doce companhia,
Sonho declamar-te esta poesia,
Mas minha pueril timidez
Cala-me de uma só vez.

Assim, não me resta outra saída;
De tal forma que te escondo a verdade
E, ao teu lado, sigo a minha vida.

Fazendo dela somente um esboço
Do que uma obra-prima poderia ter sido:
Calado, caído, de tristeza um poço.

----

Poema publicado no livro POEMAS DE MESA, editado pela Vocábulo Um e lançado na última sexta-feira (16/01/2015) no Ideal Clube.

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Lançamento do livro POEMAS DE MESA 2014


Para que todos saibam um pouco mais sobre o POEMAS DE MESA, reproduzo aqui um texto do Batista de Lima publicado no Caderno 3 do Diário do Nordeste, sobre o lançamento da edição de 2009, reforçando o convite para o lançamento da edição de 2014.

Quando? Sexta-feira, dia 16/01/2015
Que horas? 12h30min
Onde? Restaurante do Ideal clube
VAMOS!

Foi uma honra participar da coletânea com meu "RASCUNHOS" e dividir o livro com nomes consagrados e recentes da literatura cearense, como Juarez Leitão, Luciano Maia, Alcimor Rocha Neto, Jeff Peixoto, Aíla Sampaio, José Telles, Fernanda Quinderé, Pio Rodrigues, Carlos Augusto Viana, Ubiratan Aguiar, Maria Luiza Artese e outros. Agradeço o convite feito pela Editora Vocábulo Um, na pessoa do seu Editor e meu grande amigo Jeff Peixoto!

Vamos ao texto.

----


Esta última coletânea, de 2009, já é a de número cinco e apresenta 41 autores, com seus poemas. São, em grande parte, frequentadores do restaurante. Alguns, mesmo não estando mais entre nós, são lembrados com a apresentação de seus poemas, é o caso de Costa Matos e Patativa do Assaré. Entretanto, o que chama a atenção é o cardápio de poemas.

O projeto "Poemas de Mesa", do Ideal Clube, é curioso porque fornece o pão do espírito àqueles que se refestelam com o pão do corpo. Os frequentadores de seu restaurante, enquanto esperam a preparação de suas refeições, têm oportunidade de ler poemas dos mais variados autores, principalmente cearenses. Enquanto degusta um precioso Malbec, o comensal pode apreciar um belo soneto de Francisco Carvalho que fala de "Valquírias pintadas por Picasso numa estrofe de Lorca". Vinho e poesia, quando se unem, fertilizam a ocasião, por mais deserta que seja. Por isso que toda semana se encontra um poema diferente sobre a mesa para ser deglutido ou deglutir o seu leitor. Ao final do ano, a direção cultural do Clube lança uma coletânea com todos os poemas banqueteados ao longo dos 365 dias.

Esta última coletânea, de 2009, já é a de número cinco e apresenta 41 autores, com seus poemas. Esses autores são, em grande parte, frequentadores do restaurante. Alguns, mesmo não estando mais entre nós, são lembrados com a apresentação de seus poemas, é o caso de Costa Matos e Patativa do Assaré. Entretanto, o que chama a atenção é o cardápio de poemas que se apresentam. São oferecidos desde belos sonetos confeccionados na mais tradicional forma, como o apresentado por Artur Eduardo Benevides, até quitutes líricos de sabor sensual, cozinhados em terrinas de versilibrismo serelepe como é o caso de Hermínia Lima e Regine Limaverde. De forma que as sinestesias que evolam do restaurante Arcadas são provocadas por palavras ao molho e iguarias metafóricas ao som das ondas de um verde mar bravio que se narcisa a alguns metros dali.

Logo na apresentação, o diretor de cultura e arte, do Ideal, o poeta José Teles, mentor da promoção, credita a Augusto Pontes a idéia do nome "Poemas de Mesa". Aí nos vem a idéia de ampliar essa promoção poética e criar o projeto "Sala de Espera", em que nas antessalas das clínicas médicas e consultórios dentários, pudéssemos apreciar poemas eternizantes enquanto buscássemos saúde para nos distanciarmos da eternidade. Nas enormes filas de pagamentos de rotineiras contas, poderíamos amenizar a dor do desembolso com o refrigério da leitura poética. As filas do INSS e do DETRAN ficariam menores se as enfrentássemos empunhando um Vinícius de Morais ou ruminando um Bandeira ao instruir que a melhor forma de suportar uma dor é amá-la.

Tudo isso pode ser promovido, afinal, como apregoa Ruy Câmara, na contracapa deste opúsculo, os poetas "sabem lapidar as duras palavras para torná-las harmônicas, evocativas e na fratura de um verso, serem capazes de engolir o suplício do mundo".

A leitura desta coletânea de poemas às vezes é um tanto trepidante pelo fato de que o leitor quando termina a leitura de um bom texto pode logo em seguida ter que enfrentar uma ondulação muito mais de palavras que de poesia. Os sonetos, no entanto, mantêm uma regularidade formal e conteudística. Artur Eduardo Benevides puxa esse cordão, apresentando em um soneto decassilábico, com rimas em ABBA ABBA CDC DCD, e temática amorosa, o melhor momento do livro. É tanto que numa enquete que promovi entre alunos de Letras, esse poema foi escolhido como o melhor texto da antologia. Antológico seu último terceto: "Porque se ao fim da tarde já cheguei,/ Sentindo que meus dias vão findar,/ Jovem - só por te amar - ainda serei."

Não ficam muito atrás os outros sonetistas que se apresentam: Luciano Maia, Cid Carvalho, Giselda Medeiros, Dimas Carvalho, Ivan Junqueira, Francisco Carvalho e Juarez Leitão. No lote dos versilibristas, mérito para Adriano Espínola, que inicia seu belo poema, constatando que "o azul é um animal marinho". Alexandre de Lima Souza desconfia de que "o poema sente que está sendo seguido". Já Barros Pinho constata que "o poema entra inteiro nos ossos da pedra". "Com exercícios de aprendizagem sob o rosto da melodia", Dimas Macedo instaura o lírico-amoroso, o que faz também Fernanda Quinderé e José Teles. Horácio Dídimo republica o melhor poema de sua trajetória literária, o famoso "Os fantasmas". Jorge Tufic, sebastianista, veleja, tendo D. Sebastião no comando das velas. Leda Maria consegue, através de palavras azuis, administrar sua nutrição de signos poéticos.

Outra vertente poética que chama a atenção fica por conta dos metapoemas. Afinal, diante da velhice do poema, é necessário estarmos sempre testando suas fundações para que a estrutura não venha a ruir. Essa preocupação é de Alexandre de Lima Souza, Barros Pinho, Beatriz Alcântara, Carlos Augusto Viana, Leda Maria e Virgílio Maia. Esses vão primeiro examinar a palavra, antes de servi-la. Vão examinar a feitura do prato de signos antes do banquete dos versos.

Essa ideia de servir também poemas, em um restaurante, é criativa. Nesse caso, de poemas de mesa, fica mais suculenta a iguaria quando há um poema a temperá-la. Depois é gratificante a companhia desses poetas já citados e desses outros que são bem vindos a nossa mesa. Nada melhor que desfrutarmos a companhia de Almircy Pinto, Cláudio Neves, Dina Avesque, Lúcio Alcântara, Márcio Catunda, Martinho Rodrigues, Neide Azevedo, Pedro Henrique Saraiva Leão, Pio Rodrigues Neto, Révia Herculano, Ricardo Guilherme, Tércia Montenegro, Ubiratan Aguiar, Vânia Vasconcelos e Vicente Alencar. Cada um tem algo para nos dizer. Não é, no entanto, um dizer comum. É a forma de dizer que nos provoca encantamento.

Por falar em encantamento, qual a poesia que não provoca nosso deleite mental? Ela é revelação. O poeta chega, senta ao nosso lado e abre seu coração. Se não vem, manda seu representante primeiro, o verso. Manda sua alma para nos fazer companhia. Por isso que esse projeto do Ideal Clube se torna grandioso, por vir montado numa idéia grandiosa que é de forma simples fazer algo grande. São cinco anos de poemas sendo servidos. E muitas pessoas lêem, e discutem e refazem, quando estão à mesa. Que o poeta José Teles não perca seu entusiasmo e continue promovendo a literatura, não só com os festejados lançamentos literários que ali ocorrem, além do concurso Prêmio Ideal. É preciso dar continuidade ao projeto Poemas de Mesa, bem mais silencioso, como promoção, mas muito mais ousado e criativo na sua forma de nos preparar esse prato indispensável para nossa alimentação, a poesia.

(Fonte: http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/cadernos/caderno-3/coluna/batista-de-lima-1.128/mata-ria-699290-1.608126)

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Margem de erro

(Salve-se quem puder / save yourself if you can, Juliana Caneca)
Noite dessas, rodeado de petiscos e cervejas, encontrei-me com uns amigos. Alguns deles discutiam fervorosamente sobre política, enquanto eu e outros optamos por manter o silêncio. Não sei os motivos destes, mas eu mesmo não suporto mais discussões calorosas sobre quaisquer assuntos que sejam e que não levam a lugar algum, apenas ao desrespeito e à troca de farpas desnecessárias. Quando foi que as pessoas desaprenderam que religião, política, futebol e mulher não se discute?
O álcool começou a fazer efeito, os ânimos se acirraram, quando o onipresente Seu Tobias - que nunca falta a nenhuma de nossas reuniões, sendo o principal abastecedor do grupo - deixou a bandeja de lado e resolveu apaziguar a situação, calando os exaltados:
- Rapaz, me lembro como se fosse amanhã. Essa história de pesquisa eleitoral num tinha tanta coisa, não. Era só assim: 93% votam no Manel das Tauba e 17% votam no Zé das Tapioca. Pronto. Não tinha esse negócio de 34% da classe média vota no candidato A, mas 46% tem ensino universitário, 89% tem veículo, 99% tem smartphone... Então, noves fora, excluído o resto, considerando a margem de erro do IBOPE, do PNAD, do FMI, da ONU, da CBF e da FIFA, o próximo presidente do Brasil tem 50% de chance de ser homem. Ou mulher. Ou não.
O barulho do silêncio ecoou na mesa. No meu âmago, concordei. Aqueles que quiseram discordar, não acharam argumentos.
- E digo mais. Qualquer dia, as pesquisas, de tão restritivas, vão passar a divulgar a opção de uma pessoa apenas. Aí vai sair no jornal assim: Francisco das Dúvidas tem 87% de chance de votar no candidato da oposição; considerando a margem de erro...
Depois dessas palavras, fim de discussão.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

A última conversa com Cleto Milani

(Rafael Caneca e Nilto Maciel, na palestra por ocasião do I Simpósio sobre Literatura Cearense, ocorrido na Universidade Federal do Ceará)
---
A Nilto Maciel


Passeando pelo Monte Castelo com meu animal de estimação, encontrei Cleto Milani. Com aquele jeitão dele, nada acadêmico, meio marginal, cumprimentou-me como de costume e conversamos como se nos houvéssemos despedido no dia anterior. Mas já fazia alguns meses que não nos esbarrávamos.
Contou-me seu itinerário desde nosso último encontro, de como aqueles haviam sido tempos de mula preta. Sem me deixar falar quase nada, construiu um quase monólogo (ao qual eu me sujeitava com todo o prazer, deliciando-me só com escutá-lo), revelando-me inclusive a sua mais recente aventura, com uma mulher que chamava carinhosamente de "Rosa Gótica". Eu apenas sorria, atento, enquanto ele me detalhava a última noite com Helena (esse era o nome dela).
- Ela, donzela, travando uma verdadeira guerra comigo, o cabra. Quase que viro bode! Quando vi que voltamos à estaca zero...
Ríamos ambos. Ele seguiu com as histórias, relatando que, por causa desse seu caso, chegou a ser perseguido pelos varões de Palma – um, inclusive, ameaçou-lhe com um punhalzinho cravado de ódio. Teve, então, que sair de lá às pressas.
Na fuga, passou por Baturité e conheceu um navegador de pedalinhos. Disse-lhe que trabalhava, na época da cheia, numa lagoa em Pacoti – mas que, na verdade, seria um verdadeiro guerreiro Monte-Mor, tendo vivido na torre de Babel.
- Um louco?
Um carro passou, buzinando e levantando poeira. Achei ter visto um pescoço de girafa na poeira, mas tal ideia me fugiu logo. Girafa? No Monte Castelo? Só se fosse no Carnaval, há muito passado.
O cão, que até aquele momento permanecera agitado, acalmou suas patas insolentes. Ele se postou no chão quieto, virado para o leste. Com os olhos fechados, parecia sequer respirar. Um estremecimento tomou conta do meu corpo.
Veio, então, a lembrança de perguntar-lhe sobre nosso amigo em comum - que, por mais avesso que fosse a isso, era um dos grandes luzeiros do mundo. Cleto silenciou-se e foi embora, sem se despedir (nem foi preciso). Percebi que ele havia caído num vasto abismo.
Foi-se. Foram-se.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Não puxe conversa de elevador comigo

(Vando Figueiredo, Michelangelo)
---
 Não tenho paciência para pessoas monotemáticas. Para mim, monotema = monotonia. O bom da vida é o múltiplo, o vasto, beirando o infinito!
Gosto de ir, numa conversa, do futebol à literatura; de uma cidade bonita a bons restaurantes; daquela menina à dificuldade de achar um marceneiro que preste. Isso porque, quando bato um papo com alguém, minha cabeça voa a mil (o segredo está em escutar mais e falar menos), de modo que é bastante provável que um dia aconteça esse diálogo:
- ... daí o drible que ele deu no zagueiro foi desconcertante!
- Mudando de assunto - tô pra ver expressão mais frequente quando estou numa conversa (e ela só não acontece mais, porque eu mesmo me fiscalizo para evitá-la às vezes) -, quando você for à Munique, não deixe de visitar Dachau.
Calma, eu me explico. Acho que não é problema de coerência nem de coesão... É que, quando você fala sobre o "drible desconcertante do zagueiro", imediatamente me lembro do jogo na noite anterior, do bar em que assisti ao jogo, da cerveja gelada desse bar, de um dos melhores lugares em que já tomei cerveja na vida (Hofbrauhaus-Munique), dos parques em Munique, da velhinha em que me hospedei, do diálogo que entabulamos no seu apartamento, da sua revolta quando eu disse que queria visitar Dachau e, finalmente, da impressão que me causou esse campo de concentração. Viu, é fácil! Isso tudo acontece em menos de um segundo, garanto.
- Mostra o nível hard de estupidez que a humanidade pode alcançar.
Tenha em mente: a continuidade do diálogo depende, única e exclusivamente, da resposta que você me der.
- Tá, mas eu tô falando do jogo, cara!
Mudando de assunto, vai um cafezinho aí?

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Por favor, desliguem seus celulares

(Vlamir de Sousa)
---
 Vou confessar um pecado meu: nunca fui aficionado por tecnologia. Nos tempos atuais, isso talvez seja o maior erro que uma pessoa pode vir a cometer. Acho, de verdade, que os homens criam necessidades que, de um dia para o outro, se convertem em necessidades básicas de primeira ordem, como comer e dormir. Nada mais sintomático do que o fato de os smartphones terem se transformado no parâmetro para aferição da personalidade de alguém, de sua modernidade etc. e tal.
Do meu círculo de amigos, fui dos últimos a comprar um desses aparelhinhos que pretendem fazer de tudo - mas que, amanhã, já estarão obsoletos demais para isso. Sim, comprei um smartphone e, depois, caindo no abismo em que me havia metido, tive que baixar os aplicativos da moda, dentre os quais o maior substituto, na atualidade, de rodas de conversa: o whatsapp.
Seria apenas uma plataforma para trocar rápidas mensagens com amigos, combinar eventos, discutir coisas breves. Problema é que as pessoas se esqueceram de que o telefone serve para se comunicar também oralmente, e passaram a cobrar apenas que as respostas às mensagens fossem dadas instantaneamente. Isso pra mim foi o pesadelo.
Não consigo me adaptar tão facilmente a essas tecnologias tão voláteis. Não sei me comportar como todos o fazem, não sei ficar na mesa do bar, na roda de conversa, no aconchego do lar, no cinema, no estádio de futebol... mexendo os polegares pra um lado e pro outro freneticamente, subindo e descendo a tela, encaminhando mensagens, vídeos e imagens enquanto na minha companhia uma bola rola, um filme passa numa tela bem maior, vozes comigo dialogam. Não sei se é questão de educação (ou da falta dela), mas não consigo estar diante de uma pessoa, conversando diretamente com ela, mas olhando fixamente para uma telinha minúscula entre as minhas mãos.
Fiquei ainda mais assustado quando vi que as pessoas estavam começando a criticar um amigo, considerando-o distante porque ele não conversava mais tanto no whatsapp. Não importa se ele estava curtindo sua família, se estava estudando, se estava com outros amigos, se estava curtindo a vida... A falha dele era que não estava mandando mensagens em um grupo virtual. Alguém se identificou?
Decidi, então, desligar meu 3g e meu wifi.
Saiam às ruas. Quem sabe, assim, vocês me encontrarão. E, se não encontrarem, não se preocupem: há uma cidade e uma vida ao redor de vocês.

quarta-feira, 26 de março de 2014

Saiu n'O Povo - IV

(Jornal O Povo, 26 de março de 2014)
---
Mais uma vez, na edição online do Jornal do Leitor.

Links para o texto:
- O Povo
- Blog RafaelCaneca

sexta-feira, 14 de março de 2014

Ingênua idade

(Felipe Sardenberg)
---

Menino, vem cá e me explica
isso que você desenhou.

     Não tem o que explicar, é simples:
     é a vida, meu senhor.

E você acha que a vida é assim,
preto no branco, sem percalço?

     A vida é minha, cabe a mim;
     depende só daquilo que eu faço.

Pobre coitado, naquela idade,
ainda com tanto a aprender!
Não, não é do jovem que estou falando;
é de mim
é de você.

quarta-feira, 12 de março de 2014

É só história...

(Totonha Laprovitera, Nem todo cinza é preto e branco)
---
 Lembro-me como se fosse ontem: tirar a carteira de motorista (a "carta", para os mais velhos) não foi tão difícil assim. Fiz o psicodélico, compareci ao curso obrigatório de uma semana (onde aprimorei minha técnica de como dormir sentado em uma cadeira extremamente desconfortável, mas fingindo estar acordado), prestei o exame que serviu apenas para ver se eu sabia ler ou não, passei pelas aulas de direção e pronto. No Detran, fiz exatamente o que me ensinaram: parei na faixa de pedestre (mesmo sem ninguém querendo atravessar), parei antes do "trilho" (onde até fiz menção de ouvir os dois lados, para saber se vinha trem ou não - não ganhei nem um sorrisinho meia-boca do examinador por isso!) e estacionei de ré. Aprovado, agora era só esperar.
O teste veio depois. Não foi nas ruas de Fortaleza, que dez anos atrás não eram tão caóticas como hoje; nem em rodovias, nas quais só me aventurei com bastante experiência. O teste mesmo, o rito de passagem, foi quando me atrevi a passar pela temida Praça Portugal.
Até esse dia, eu sempre pensava em como fugir dela por vias alternativas. Arrodeava, andava quatro, cinco quarteirões a mais, mas no final dava certo. Gastando, no entanto, combustível e preciosos minutos para além do necessário.
Um dia, então, decidi me emancipar, atingir a minha maioridade.
Não lembro onde queria ir, mas, antes de sair de casa, desenhando mentalmente todo o trajeto que percorreria, incluí na rota aquela que havia sido abandonada desde o dia em que substituíra, como meio de locomoção, a carteira de estudante pela de habilitação. Segui o meu caminho guiado pelas gotas de suor que escorriam pelo meu corpo - quanto mais me aproximava da "esquina da praça", mais sentia que não estava dirigindo, e sim nadando em um mar de suor e nervosismo.
Pronto, cheguei. Desembargador Moreira com Dom Luís.
O Shopping Aldeota do meu lado direito, milhões de pedestres recém-saídos de seus formigueiros querendo atravessar de um lado para o outro, a tão conhecida parada de ônibus do meu lado esquerdo e, no horizonte, à beira do mar (esse, de verdade), meu oásis urbano. Mas, para alcançá-lo, eu deveria passar por essa provação, meu bar mitzvah aos dezoito anos.
O pé tremendo sobre o acelerador, o medo infantil de estancar (a época em que isso era rotineiro já me parecia tão longe!), a fila de carros atrás de mim e, na rotatória, um, dez, cinco, mil, milhões de carros circulando, iguaizinhos uns aos outros. Seriam, na verdade, cópias de um só carro, replicado, girando e me impedindo de entrar? Motoristas dirigiam como naquele vídeo do Pateta, enquanto a fila atrás de mim só aumentava; a do lado, porém, obedecia estritamente ao postulado de Murphy, segundo o qual "a fila do lado sempre anda mais rápido".
Não sei quanto tempo fiquei lá, parado, aguardando o momento certo para me inserir naquela volta insana e acabar com o carrossel de emoções. Cinco segundos? Trinta segundos? Um minuto? Vinte minutos? Uma hora? Uma década? Quem sabe?
Que ronquem os motores...
Vai!
Êxtase, risos, suor e lágrimas - se fosse o roteiro de um filme, nessa hora o bom diretor captaria exatamente essas sensações mim, enquanto eu daria voltas e mais voltas ao redor da praça, até o por do sol. A verdade, no entanto, foi que eu entrei, saí e segui meu caminho aliviado. Havia, de fato, completado o ciclo.
Olho com carinho para esse dia, o dia em que percebi que, sim, eu podia dirigir. Mas isso vai ficar apenas para a história. Pois, sob o pretexto de que vai melhorar o trânsito da nossa capital, pretendem destrui-la.

E agora, sem passar por esse rito de passagem tão importante, como nossos educados e diligentes motoristas adquirirão a habilidade necessária para circular pelas ruas da cidade?