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quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Passagens - I

(Aldemir Martins, O Palhaço)
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Primeira viagem para o exterior a gente nunca esquece. E o primeiro destino, em um mochilão por treze países diferentes, a gente sempre lembra com um carinho ainda mais especial. É assim, então, que Madri aparece na minha memória.
Quase seis meses longe daquela que me atura até hoje, guardo todas as cenas daquela cidade na minha cabeça: o reencontro em Barajas (depois de horas de ansiedade, mais agravadas ainda pelos voos perdidos em Lisboa), o transporte de malas pelo metrô, as caminhadas procurando o albergue. O elevador old school, o quarto digno de um três estrelas no Brasil, a recepção por uma marcha gay que passou em frente ao albergue assim que a porta foi aberta. Os pontos turísticos. Os kebabs. Os McDonalds, Burger King e cafés a cada quarteirão.
Mas o que mais me marcou foi um acontecimento trivial. Bobo, até.
Viajando, o senso de liberdade havia se aguçado. Em mim, isso se expressava em uma vontade líquida: um copo de cerveja no meio da rua, no meio do nada.
Um copo, não; poderia ser uma caneca de chope ou uma long neck. A única condição era que fosse apreciada enquanto eu caminhava pelas ruas, como se nada mais fosse me deter. E, a cada passo dado, a vontade crescia mais e mais. Até o ponto de virar desejo.
Ela, do alto da sua experiência quase semestral naquele habitat, decidiu me alertar:
- Olha, cuidado. Tem canto aqui que é proibido beber no meio da rua.
Cego pelo meu desejo, fui a uma mercearia, chamei o vendedor e, no meu portunhol aprendido em três anos na casa de cultura hispânica, indiamente perguntei:
- Hola. Cerveza?
Enquanto ele me passava a garrafa e o preço, me lembrei de dar ouvidos ao alerta feito por ela. Afinal, não queria, no primeiro dia, ter complicações legais no estrangeiro.
- Señor... Puedo beber encuanto camino?
A cara de surpresa do vendedor, como se aquela pergunta fosse a mais absurda do mundo, me deu um indício da resposta que viria.
- Claro que sí!
Alívio. Abri a garrafa e, antes mesmo de terminar o tsss, ele deu o arremate que me marcou até hoje:
- Sí, se puede tomar. Pero, si la polícia lo vé, pagará una multa.
...

Com esse raciocínio, aprendi: sim, posso fazer qualquer coisa. Se for errada, só não posso ser descoberto.

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